Além de frases e dicas literárias publicadas na página do Facebook, somos apaixonados e apaixonadas pela escrita com idades, trajetórias e expectativas diferentes que, separadamente, registramos nossos devaneios. Se quiser fazer parte, envie para nós seu texto (oficinacompartilhada@gmail.com)! Os que forem escolhidos pelo grupo serão divulgados aqui na Oficina Compartilhada.

Aproveite o espaço SEM moderação!

Bem-vindos e Bem-vindas!! Saravá!

terça-feira, 31 de maio de 2011

"Something's changing inside you, don't you know?"

"Não há nenhum outro lugar onde eu poderia estar" pensou a pétala no curso do rio. A cada obstáculo, a água mudava seu rumo... criava um braço à esquerda, passava por baixo, mas ia adiante. E o que ficou pra trás? Acúmulos do resto passado.

"Não há nenhum outro lugar onde eu poderia estar" considerou a pétala nas voltas que dava sem chegar ao centro. Um redemoinho sem vento, a força do fundo provoca movimento. Sem tempo. Voltas, voltas. Quem sabe um ralo para o fim? Parou o fim. Melhor não pensar em que bueiro vai parar.

"Não há nenhum outro lugar onde eu poderia estar" decidiu a pétala no fluxo do ar. Voando sem rumo, escorando em obstáculos, machucando suas veias de planta. Sem rastro, sem sangue. Hematomas que seguem pelo presente e desaparecem no segundo anterior, no segundo seguinte.

"Não há nenhum outro lugar onde eu poderia estar" inscrito na árvore: amantes da paixão gravaram na natureza seu sentimento fugaz. Tentaram por fim eternizar o imemorável. Cai uma lágrima, escorre uma gota da seiva, tomba uma pétala. O que resta?

Histeria

A ameaça do desconhecido me perseguia enquanto a histeria da paixão me consumia. Loucos um pelo outro, loucos um com o outro... Eu não conseguia passar por cima das traições. Não estava procurando conforto material ou um pai para possíveis filhos. Estava a procura de cumplicidade, companheirismo, dedicação. De que adiantavam viagens fantásticas e compras luxuosas? Eu queria ter uma vida sentimental boa.

Já solteira e no meio de um turbilhão de pensamentos, muitas vezes saía de casa sem rumo. Minha cabeça caía num abismo e uma das outras assumia o controle.


-“Quem é essa?” Me pergunto no dia seguinte... Tento buscar alguma fagulha de pensamento no fundo do poço e só o que vem é a frase do pobre coitado, pensando alto - "Você é muito linda, o beijo que você me deu...".


É claro que ele não estava entendendo nada. Eu também não estava... O que uma garota como eu estaria fazendo com aquele estranho num motel barato da Praça Mauá? Provavelmente fugindo. De mim... Dele...


A primeira vez tinha classe. Acordei em bairro nobre, piano ao longe... Longe?!?!? Não!! Bem perto. Ele parou de tocar, disse que tinha café, e eu atordoada só conseguia dizer que estava atrasada - e estava mesmo, era a estréia do meu primeiro projeto solo. Quando eu voltei do banheiro ele perguntou:


- Você perdeu alguém?


- A gente vive perdendo, né?


- Ontem você estava correndo risco de vida...


- Você é um anjo... Como é que eu faço pra ir embora?


- Você está em Laranjeiras, é só descer.


Podia ser pior, e acabou sendo. Praça Mauá, sem o menor vestígio de memória. Eu acabava de perder alguém e deste jeito ia acabar me perdendo também.

sábado, 28 de maio de 2011

A janela

"Dizem que segundos antes da experiência de morte, toda nossa vida se apresenta diante de nós como um filme" comenta Claudia com Claudio. O irmão gêmeo prontamente se põe a duvidar dizendo"Será mesmo?". Obviamente essa conversa não surgira à toa. Claudia de tempos em tempos importunava o irmão com conversas trágicas e mórbidas, e Claudio as ouvia sem emitir nada além de uma interrogativa. Nunca se comprometia dando suas opiniões sobre tais temas, que eram sempre levantado durante o sentimento de solidão de Claudia, sem hora e nem cômodo certo para irromper. O não comprometimento de Claudio nas conversas não era dotado de uma não opinião sobre o assunto como pensara Claudia, mas o silêncio devia-se ao temor profundo da morte que não conseguia expressar-se pela fala. Numa manhã de julho, Claudia acorda e olha para cama do irmão - vazia. Ela fica com preguiça por causa do frio que faz, continua deitada. De repente ouve um grito gutural, reconhece a voz do irmão, levanta assustada e corrre em direção a ele. Ao adentrar a sala, vê o irmão inclinado para fora da janela. Ele olha para trás, e ao avistar a irmã, um olhar denso e carinhoso é expressado, para logo depois virar-se e, num majestoso pulo, ir em direção ao filme de sua vida. Claudia corre em direção à janela; como num filme observa a leveza do irmão ao mesmo tempo que mil cenas passam em sua alma. Nos quinze segundos em que duraram a queda de Claudio, ela vê toda uma vida, enquanto ele, sem saber muito o que fizera e como pudera fazer, ficou procurando o filme de sua vida. "Ela estava errada" foi seu último pensamento. (Adaptado para o blog)

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Estacas

A porta da garagem se abrindo - o farol do carro lança contra as grades do portão aquilo que estava oculto: a prisão da solidão. E no chão são refletidas as sombras de cada estaca da porta que protege - são lacunas que interrompem o continuum da luz. Cena de horror.

O carro sai, só pelo controle da embreagem, sem necessidade de acelerador. São quantas marchas mesmo? São os passos necessários para marchar por cima do cotidiano. Olhos profundos no rosto sem sorriso. Nem adianta farolar, o olhar não muda. Não, não se trata de surdez visual, mas de inversão do externo - o fora está dento e o que dentro reside está no mundo.

Mundano, Mudano, Mudando.

Seria Deus um piadista?

Juntos criaram seis filhos. O marido era divertido e a casa, confortável. A aposentadoria forçada antes dos 60 anos não chegava a ser um problema: estava realmente cansada. No entanto, quando pensava nas viagens que costumava fazer e nos bons restaurantes que frequentava ficava com preguiça do dinheiro não estar sobrando. Tudo o que queria era uma chance para provar que dinheiro não traz felicidade. Quem inventou isso era um grande piadista, pensava. Assim como provavelmente Deus também deve ter, entre outras habilidades, a de fazer comédia.

Novela nunca foi seu passatempo predileto. E sentar-se na frente da TV por horas a deixava prostrada. Queria viver e não absorver vidas inventadas. De vez em quando encontrava os antigos amigos do trabalho em grandes almoços de domingo. Na maioria das vezes todos derrubavam garrafas de vinho ao som de muita fofoca. Também não queria mais fofocar. Queria viver e não discorrer sobre a vida alheia. Buscava no fundo do peito algo para lhe tirar da inércia, mas nada encontrava.

Os filhos, todos homens, tinham pena da mãe. Tinha tanta vitalidade que vê-la naquele marasmo cortava o coração. Nem os netos preenchiam aquele vazio que ela sentia. Não que ela não se alegrasse com eles, pelo contrário. Naquela altura eram realmente a única coisa que arrancavam risadas de seu humor oscilante. Quando não estava com os netos sua única companhia eram seus fantasmas. E a cada dia eles aumentavam mais: o tempo perdido jamais seria recuperado.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Ressentimento


 “Quem sabe não é ela?” Pensa ele ao ouvir as batidas na porta. Levanta-se da cadeira ainda um pouco confuso com as coisas que foram ditas. Abre a porta de forma sutil para que não espantasse seu orgulho e nem deixasse escapar o ressentimento alheio. Ele a vê, mas não a encara. A frase simplesmente saiu de sua boca. “O que houve?” A pergunta era inevitável, embora soasse diferente. Era até possível que se alguém mais estivesse lá, poderia dizer: “eu ouvi a pergunta com todas as letras e esta era: que bom que voltou”. E ainda assim, ninguém ousaria em dizer o contrário.
Do outro lado da porta, o corpo totalmente encharcado da chuva, o rosto pálido, a boca trêmula, os olhos marejados, e mesmo que marejados, não deixaram cair uma só gota, daquilo que ele chamara de ressentimento. “Não houve nada” ela respondeu sem hesitar. Mas em verdade quisera dizer: “TUDO! FILHO DA PUTA!” e continuou “Só vim buscar o que ficou... Todas as minhas coisas”.  Então responde ele com a firmeza das lágrimas que ela mantinha nos olhos: “Mas nada ficou”.
Ela estava imóvel, com os músculos totalmente contraídos do frio que a chicoteava por trás, misturado à raiva que sentia da resposta que lhe fora dada, enquanto uma palavra lhe atravessa a mente em todas as direções: “nada, nada, nada, nada”. Quando se deu conta já tinha saído com o peso de chumbo das palavras molhadas para chorar em outros ombros.
Ele ficara como se tivesse acordado ao meio dia; ao olhar o céu via estrelas apagadas, e ao ver o sol no lugar da lua, pensara estar dormindo. Mesmo assim, meio acordado e meio dormindo, sem saber, teve medo. Não tinha medo de não saber se estava desperto ou em sonhos, pensava que isso nunca tivera sentido, uma vez que o sofrimento era naquele instante; eterno instante. Assim o medo estava no céu - a lua se ausentara. Não eram férias curtas, tampouco infinitas, mas ninguém duvidaria que fossem ser duradouras. Contudo se regozijava da maneira sóbria como tinha agido na noite anterior, pensamento que alternava ora de ocupação ora de preocupação (...)

terça-feira, 17 de maio de 2011

Tatuagem

"Take this". Ai. Me dói mais a costela que sua ilustração nas páginas bíblicas. O que mais posso gravar em meu corpo além do X na minha testa que atesta minha autoria? Sei que no meu corpo estão gravados meus hábitos e rituais, mas não os sinto, somente quando os repito e a sensação de lar me vem à tona.

Me machuca mais a costela que sinto do que o mar que ouço. Esse me atinge de diferentes formas. Já tive medo de engolir uma abelha, quando não passava do lacre do vinho. Lacre ou selo? Ambos seguram a segurança. Já a costela me desnorteia, me levando para leste. O mar me re-volta. Hoje sonhei com ele.

Sonhei que as máquinas que trabalham à 50m do meu ouvido soavam como cachoeiras. Em meus sonhos elas se tornaram o mar contra a rocha. E eu podia me divertir na água. Posso me divertir no caminho.

Me permito fugir à minha ética. De que vale meu sentimento se não está posto em causa? De que vale o mar sem contato com a rocha - para a areia formar? De que eu valho para mim se não existo no instante que me sinto? Mal percebo que fujo à ética para o meu prazer... retorno à ela para meu prazer no desprazer do outro.

Escuto mais um tiro suicida. Soa como garças, como zumbidos de abelhas, como máquinas rangendo. No ouvido. Na carne, nada. No meu corpo, só o passado. De quem sentia o som nas veias, as palavras na derme e a mente nos cortes. Objeto de mim, objeto do outro. O processo do sujeito continua obscuro. Não há luz. É uma ques†ão de se acostumar à escuridão. 

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Frascos

Começou a conversa bem irritada, pois ainda pensava nos recalques dos outros. “E esse nariz aí, de onde saiu?”. E me contava que não entendia por que é que as pessoas querem sempre achar defeitos nos outros. Ou desculpas para o jeito que elas são. Uma outra vez tinha sido “Você usou aparelho?” E desabafava que não aguentava mais falar de si mesma ou ter que dar explicações para o jeito que era, o corpo que tinha, a vida que levava.

Se a bunda está dura demais é porque faz muita ginástica, se está mole demais é esculhambada. A unha funda e bem feita é postiça, e se não vai ao salão é largada... Magreza só pode ser bolinha e dentes brancos... capinha! E por aí vai. Não existe mérito, não existem elogios no mundo moderno. E muito menos respeito. A ordem do dia é “se recalcar e só esculhambar”. Assim sente-se melhor e não é preciso preocupar-se tanto consigo mesmo.

Ouviu o vizinho dizer que seu namorado era um caos. E ficou com um baita ponto de interrogação na cara, pois bastava ele se olhar no espelho pra ver que o caos era ele. A cara era feia e o pior, também tinha perna de alicate! E a colega do curso dois dias depois emendou: “O meu irmão perguntou o que minha amiga linda estava fazendo com um cara que era viado.” E assim seu namorado virou viado, pode?

Passando férias com uma amiga em sua terra natal a outra disparou: “eu não vou te levar pra festa porque Fulano me disse que você é atraente para qualquer homem, aí todo mundo só vai olhar pra você”. Disse que sorriu e entendeu. Fazer o quê? Pelo menos foi sincera.

Os anos se passaram e um belo dia chegou em casa, toda produzida. Era aniversário de casamento e ela caprichou no salão. Porém a única coisa que o marido reparou foi num fio de cabelo espetado no canto da boca. Irritadíssima pensou “assim não, dá um tempo!”. E saiu nas tamancas com o pobre coitado do marido inseguro, que de brocha passou a corno e teve que cantar de galo em outro canto, porque com mulher de bigode, ninguém pode.

sábado, 14 de maio de 2011

DESCULPAS DO DIA POSTERIOR

Passou por sua cabeça que "O compromisso do dia" talvez fosse adiado. "Quem sabe mais tarde?" Fala em alto e bom som para se convencer que realmente seria impossível fazê-lo. A dúvida era uma forma de restar um pingo que fosse de certeza. O compromisso era inadiável, contudo, ele já havia se lamentado nos dois minutos em que conseguira lembrar do tão importante compromisso. O esquecimento era companheiro do desencargo de consciência. Ainda sim, depois do dia veio o outro, e o esquecimento bate à porta: "Desculpe, hoje não vou abrir" fala com convicção. As desculpas não eram para si, mas o outro...os outros...É, e era pra si também. "Não vou abrir" Bate a porta com uma força incomensurável. Senta na cadeira defronte a janela, vê o esquecimento acenar pela esquadria de um outro cenário que lhe cobiça. Mais uma vez murmura desculpas, fixa o olho no papel e começa a escrever uma breve carta que começava mais ou menos assim: "Desculpe-me, por dois minutos lembrei-me de esquecer".

terça-feira, 10 de maio de 2011

Mel

Pousa a abelha no braço da criança. Não se espanta! E não espanta o zumbido o inseto. Certo de que não é pico, o menino deixa a abelha descansar. Não há picada quando a abelha sai. Agradecida e agraciada pela companhia de um ser.

Voa não muito longe e encontra a rosa que queria. Vermelha. Lá permanece pelo tempo que pode, encontra todas as veias da rosa, chega até o miolo amarelo radiante. Descanso passageiro, já era hora de partir. Seu pouso foi retirado da orelha da moça. A rosa, viva para a abelha, era murcha para a moça. E a moça a oferece para o rapaz a sua frente: é só o que tenho a oferecer.

A partida da abelha logo encontra novo porto. Um copo, de líquido vinho. Nem doce, nem amargo. Mais um lugar de descanso. Foi levada aos lábios. Inúmeras vezes provou do beijo de um desavisado. Não fosse a conversa entediante, teria ali permanecido por mais tempo. Lá vem aquele velho hábito de ser enxotada por uma palma de mão temente de seu ferrão.

Zumbizando, ressentida, voa sem rumo. O ferrão não é para agora. Matar é suicídio. Onde estão seus campos? Pode-se ter um sossego no copo de guaravita? É diabetes na certa, excesso de glicose. De certa forma, a colméia está tão longe, não tem mais sentido buscar mel - esse só tem utilidade em grupo. Posso pousar em qualquer lugar... aqui pra mim está bom.

E roda em torno da luz. Pára, emite seu som, voa, volta, e faz tudo de novo. O calor da luz artificial lhe queima, mas ao se afastar logo se esquece do mal que lhe faz. E nesse ciclo permanece por muitas horas, até ir de encontro à claridade da lua. E voa.

Para finalmente descansar seu ferrão, a abelha pousa no olho do primeiro menino.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

O Flerte

Reparei que ele estava me olhando diferente. E que também respirava fundo de quando em vez. Era tímido e passava a impressão de solitário. Fiquei imaginando o que aquelas mãos seriam capazes de fazer. Eram mãos fortes e bonitas. O fato é que minha presença o perturbava - e eu começava a gostar disso.

Quando tirei da pasta uma agenda de papel, ele imediatamente fez a mesma coisa. A mesma agenda, só que de outra cor. Senti uma certa cumplicidade naquele ato. Como se estivéssemos tocando as mãos, nos acariciando às escondidas. Será que teria coragem de me abordar?

E se eu fizesse o contrário? Sou a narradora da minha própria história, não preciso de personagens para me mover. Eu mesma faço o meu mundo girar. E fiquei ali, viajando nas infinitas possibilidades que me aguardavam. As mãos dele se movendo e eu hipnotizada, olhando meio de lado. Quando de repente levei um susto:

Ele: Quer tomar um café no intervalo?

Eu: Oi? É... Quero sim.

Ele: Então vamos descer juntos quando acabar?

Eu: Tudo bem.

E me senti patética por um instante.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Associações


Segundo dia:

Desde o primeiro passo no chão após despertar de uma noite mal dormida – a interrupção do sonho por causa de um braço dormente – ironia, o braço dorme e ela de olhos arregalados sem entender o porquê –, até o fim do dia chega Jana com a mesma dor de cabeça que lhe impusera a vigília. Deita no colchão duro fica a imaginar o que aquele pedaço de vida tinha lhe proporcionado ao longo dos quatros períodos que ficara a observá-lo. Conclusão de Jana:
- Dor de cabeça e café da manhã, dor de cabeça e trabalho, dor de cabeça e almoço, dor de cabeça e...  – Uma pausa. – No almoço eu comi o quê? Arroz, feijão, carne. Bife a borboleta? Mas por que esse nome? Só porque fica aberta e parecem asas... Seria tão bom se eu tivesse asas. – E continua a associar Jana meio sonolenta. – Imagina eu voando... Eu vou pra onde? Pra onde eu quiser. Eu tenho asas e não vou gastar nada, saio voando. China, Egito, Índia... – Assim entra num sono profundo que culmina num sonho sobre a leveza de ser borboleta.

Primeiro dia:

Com traços de indígena Jana fora apelidada de ‘índia’ por seus amigos – nome que não lhe agradava e não sabia o porquê, afinal sua mãe sempre elogiava a beleza dos índios. Adulta e tendo se perdido do pseudônimo, não ousava pensar em rememorá-lo, até que o achou na boca de um antigo colega de classe que por acidente encontrara na rua.
- Índia!
- Oi.  – Diz como quem levou um soco na boca do estômago.
- Não está lembrado de mim? O César, da escola, segunda à quinta série, lembra?
- Oi César, mas quanto tempo. – Ela fala querendo se achar, mas a única coisa que lhe vem à cabeça é o atraso em que se encontra.
- É verdade.  – E com um enorme sorriso continua César – Tá fazendo o que por aqui?
- César, desculpa, mas tenho que ir, to super atrasada. – Assim, saiu correndo para o trabalho sem dizer ou pensar em mais nada, sem olhar o relógio, simplesmente as contrações dos músculos encontraram a resposta para a situação.
Jana realmente estava super atrasada e nem se recordava porque não lhe pediu o telefone ou email para um possível contato futuro. Chegando ao trabalho e levando uma bronca da chefa, metia café fervendo goela adentro para conseguir trabalhar de olhos abertos. “Mas que sono animal” dizia para um amigo enquanto se espreguiçava sobre a cadeira.
Rezando para chegar em casa e tirar a sandália de salto que a machucou o dia todo, começa a pensar sobre o repentino encontro e rumina perguntas acerca do nome do antigo colega. “Era Carlos? Marcos? Senna?” Sem êxito. Depois do banho decide ir pra cama mais tarde, faz um chá para comer com biscoitos água e sal enquanto continua a vasculhar nas gavetas da alma o nome do sorrizento. Não obstante sua memória brinca de esconde-esconde. Depois de um bom tempo desiste da reminiscência, liga a TV para ver um filme, e cai num sono que logo será interrompido por um braço dor-mente.


Terceiro dia:

“O dia vai ser produtivo... Hoje acordei com uma disposição animal” pensa ela ao acordar de um belo sonho. Toma um café reforçado – tem tempo para isso – e decide passar numa livraria antes de entrar no trabalho para comprar o último lançamento de Roberto Piglia. Como namorara esse livro! Entretanto encontrava desculpas para não entrar na loja e comprá-lo como quem com sede no deserto procura um oásis para saciar a aterradora sede – quem vai saber por quê?!
Na hora do almoço decide ir com Arnaldo – um colega de trabalho – a um restaurante onde, salada, prato quente e sobremesa eram obrigatoriamente vendidos juntos. Fizeram o pedido, e vale ressaltar, sem pressa. Situação inversa foi forma com que Jana devorara a salada, glutonice de estranhar aos mais chegados amigos e familiares, se estivessem estes a assistir a tal espetáculo: comparado somente ao famoso quadro de Goya, em que Saturno devora seu filho. Passado poucos minutos, a mulher de feições indígenas e corpo esguio começava a sentir uma terrível dor de cabeça, comenta então com Arnaldo da dor do dia anterior e a assemelha minuciosamente com a que acabara de irromper. Mas ele, pensando num trabalhoso processo em que lhe foi designado – sem mencionar a falta de interesse na conversa –, mudara de assunto sem dar muito atenção a colega. Ao terminarem o almoço, Arnaldo sem querer afirma o total desinteresse nos assuntos alheios com a pergunta: “por que não comeu mais nada além da salada Janaina?”. Ela imensamente irritadiça reponde: “por porra nenhuma”.
A saída do trabalho transcorreu sem muitos empecilhos: o trânsito tumultuado, a multidão a se esbarrar, o barulho das buzinas, o ar pesado de monóxido de carbono e nicotina já lhe eram mais que o habitual. Todavia, a dor de cabeça agarrava-se a Jana como uma criança que não quer sair do colo de sua mãe, e, se esta tenta largá-la ou finge não dar ouvidos, aquela grita ainda mais forte.
Em casa depois do banho Jana bebe um copo de água – um rito cotidiano – e parte para o duro colchão. Deitada com a face pro ar se põe a divagar ao lado de sua companheira latejante. De repente lembra-se do trabalho, em seguida da academia que ia havia duas semanas, das compras de mês, de um cara na rua que tinha esbarrado e ela falara “desculpa moço”, daí, pro almoço, então se fez uma pergunta que não lhe era estranha – não por se lembrar que sempre a fazia, mas exatamente por não se dar conta dela – “o que comi no almoço? Salada Cesar, uma carne com aquele corte, arroz e fritas, e salada de frutas de sobremesa.
Passados alguns minutos Jana não lembrava mais da dor que se apresentava em tons ora extremamente agudos ora excessivamente graves tocados no interior da caixa craniana como se fosse um xilofone descompassado. Conseguira enfim dormir. Seu sonho: tinha acabado de colorir um livro, e ao fim, todos os desenhos estavam borrados. Sentia então uma raiva imensa, mas não diretamente pelos borrões, e sim, pela raiva que sentia por não derramar uma gota daquilo que esmagava seu peito e subia-lhe a cabeça. Por fim, vinha uma pessoa estranha – estranhamente familiar lhe dizer: “pensa em uma borboleta que isso já vai passar”.

terça-feira, 3 de maio de 2011

Vegetando

Entre ela e a samambaia uma diferença: a fotossíntese. Frondosa, a samambaia enfeita a entrada, tal como ela enfeita a si mesma. Tagarela, ela bate papo e ri consigo, tal como a samambaia nutre a si.

Ela chega, empolgada, sorridente, segurando no único fio de sanidade que possui: o humor. Mas não é um humor qualquer, é o humor autocrítico. É o humor de defesa do se, não um humor anti-ataque ou um humor de ofensa. Um humor de amor. Um amor de compaixão por ela.

A samambaia é retirada do seu cantinho onde pega sol durante o dia e colocada no seu pedestal à noite. Ela sabe do carinho que recebe, e retribui com seus cachos verdes que enfeitam o pedestal. Sim, porque sua importância não reside no altar, esse só tem valor por conta da presença da samambaia.

Entre a samambaia e ela uma igualdade: o momento. É o estar para si. O brilho de quem não poderia estar em outro lugar. Cada minuto não é contado. A hora não passa. Logo, logos muda. Muda tudo, a muda da samambaia e ela se cala.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Caipirinha Sentimental

Todas já inebriadas quando, de repente, conversas paralelas transbordam dos copos cheios de mágoas. Como foi que deixou para trás, por pura vaidade, a fonte de seu prazer carnal? Hoje choram as entranhas suspirando fundo de saudades. Confusa e sem saber o que fazer, derrama a dor na mesa do bar. “Mais uma caipirinha, por favor.” As amigas não tão mais jovens assim se diferenciavam dela pela maior leveza com que levavam a vida. Seus olhos carregados denunciavam noites mal dormidas e muita bebida. Ah, e uma certa amargura também. Desde que fora trocada por uma moça mais jovem que tenta achar seu lugar nesse mundo embaralhado. Sem profissão, sem marido e sem chão.

Tentava se consolar no fato de a jovenzinha ser mais feia. E desengonçada também. Mas o alívio durava pouco. "E daí? Ela com ele, eu sozinha." E toda vez que admitia em voz alta que o casamento acabara por que tinha que acabar, sufocava no fundo da alma a possibilidade de ter sido traída. “Mas Diabos, o problema é que acabou! Não importa tanto agora.” Pensava, entre um gole e outro. E em meio às inúmeras frases feitas que eram jorradas para que ela se sentisse melhor, finalmente admitiu que sentia falta do rapaz. “Mais uma, quero sim!”, exclamou com dedo em riste. E todas também pediram mais uma rodada de chopp.

Genial esse negócio de internet. No meio da confusão de seus 55 anos de vida surgia esse jovem de 30 anos, interessado no seu corpo já não tão atraente e na sua cabeça cheia de histórias. Sincero, admitiu não querer compromisso e até ter outras namoradas. Sua indiferença durou pouco. Quanto mais afinidade tinham na cama, mais ela se incomodava em não ser exclusiva. Mas quanta bobagem! Depois de tudo o que já passou, porque não aproveitar sem cobranças? Agora ali estava a lamentar.

O outro namorado mais velho que tinha finalmente fez a escolha e levou uma das parceiras para conviver com a família. Este ela não queria mais, por puro princípio. Se ele resolveu assumir compromisso, ela não queria levar o rótulo de “a outra” e ter de se contentar com as migalhas que restassem. Se ele resolveu assumir compromisso, que arrume outra mulher para desempenhar o papel de amante. Agora o que tinha que fazer era reunir forças para procurar seu jovem rapaz. Suspiro longo. “A conta, por favor?”