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sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Mariposa privilegiada

Cansada de ser como toda crosta de árvore poluída, eis que aparece uma última sobrevivente: a mariposa branca. Com todos os seus defeitos, todos os seus parasitismos, ela tem suas preferências - o musgo que cresce na sombra do caule. 

A heroína de hoje é Mari. E Mari posa na sua árvore todo dia de sol. Só para experimentar a sombra das poucas folhas que deixam passar alguns raios de luz, e que expõem o que tem de bom e o que tem de ruim. De bom, ficamos com o presente, a compaixão do olhar. De ruim, ficamos com o passado, o fardo social.

Temos que falar um pouco mais desse fardo. Não foi Mari quem escolheu nascer onde nasceu, ser quem é aos olhos do mundo. Foram as escolhas de seus pais: da forma como seu corpo se desenvolveria - comida, exercício, disciplina - até os lugares que frequentaria - possibilidades do dinheiro, bairro, moradia. Para Mari, ficou fácil fácil acreditar no inevitável, não podemos confundir com destino. Seria desatino com seu livre-arbítrio.

Como falar de livre-arbítrio se seu corpo a trai: quando quer emagrecer, vem a vontade do chocolate; quando quer acordar cedo, vem a insônia. É sua mente brincando de dialética. Testando sua testa calejada pelos tombos da infância: ela tem dois calos, parecem até chifres de diabo. E como toda Eva, se une à serpente e oferece a maçã.

Mari poderia ser sim uma mariposa marrom, mas não é. Acidentes que nos remetem à explicações do tipo... Mas o musgo é mais saboroso - na dialética. Este sim é da natureza - da sua mente. Da cor branca da pureza - do fardo social. Que deveríamos lembrar a todos quando se tornam extremamente calculistas - da compaixão do olhar. Do branco que é ausência e é totalidade, é falta e é excesso - é passado e futuro. É indizível - é presente. Tal como o ovo de Clarice Lispector. Se o branco for branco, se esgota o assunto. E a vida? Continua com suas explicações...

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Apesar da falta


“O amor transcende o romance.” Quando ouvi, chorei. Parece óbvio, mas não pensamos nisso até que o dia chega. Você está lá no seu canto, com um novo e promissor relacionamento, feliz, e de repente sente a boca do estômago apertar. “Taquiupariu!” é a única coisa que consegue sair da sua boca seca. O coração acelera e a mente não consegue mais focar... Certos relacionamentos são assim. O amor passa pela sua vida e deixa marcas tão profundas que, mesmo que você se esforce, ele não sai de dentro de ti. Fica apenas escondido num cantinho até que toque aquela música, chegue aquele mês, você tome aquele drink ou encontre um amigo em comum que conta que seu (ex)amor tem um novo amor... Não existe ex-amor, cheguei à essa conclusão. Se é amor, não acaba. É quase como amar a avó ou o tio que morreu. Só que pior - no sentido de ser mais intenso, porque vocês se escolheram apesar do grau de parentesco. E você continua amando, apesar da falta. E ama cada vez mais intensamente com o passar do tempo porque você queria mais abraços, mais conversa, mais intimidade e menos descuido. Fica querendo que o tempo volte atrás para fazer escolhas diferentes. Quer reviver cada briga para dizer que nada importa, só o amor.

domingo, 25 de setembro de 2011

A inveja e o recalque

Pagode in Rio, Axé in Rio, Emo in Rio, e etc. Sim, no todo está sendo um merda esse evento (minha opinião eucêntrica). Mas e nas partes?
Se no todo a marca Rock in Rio é uma falácia no que diz respeito a um gênero musical, o que podemos falar de suas partes? Hoje (25/09) é o chamado dia do Metal, e Motorhead, Angra, Sepultura, Slipknot, Metallica irão tocar. Neste exato momento estou  assistindo um ótimo show - pela televisão. Ontem também, ao que consta para muitos, tocaram boas bandas - mais uma das partes que compõem o todo.
Infelizmente o evento teve uma venda de ingressos - ao m(eu) ver - horrível; péssimas escolhas dos músicos, superfaturamento no valor, desorganização na segurança, etc. Infelizmente, eu, que afirmei isso tudo horas atrás, e também disse, sobretudo que não seria louco de ficar horas e até dia na fila para comprar o ingresso, estou profundissimamente arrependido de não estar lá, curtindo um ótimo show. Agora (!) entendo que a marca Rock in Rio é apenas uma marca (!), e que na rabugice de querermos imprimir em tudo nossa moral eucêntrica, achamos que só pode tocar o que achamos bom, ou o que é Rock. Nem as palavras são tão ditadoras assim. Mas nós somos.
Infelizmente não estou pulando, suado, sim suado, fedorento, cansado, com sede etc. no meio daquela multidão horrívelmente boa! Nunca me senti velho, até este momento...
O todo, ah o todo! Mas não são as partes que compõem o maldito todo?! E eu posso muito bem não gostar do todo, mas gosto desta parte chamada dia do metal, e outros gostam das partes: pop, pagode, axé... Tem dia para qualquer parte de gosto, mas não para o todo!
A inveja mata, o recalque não...Por pouco!

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Equação das invejas e dos pavões

No tipo dos pavões vamos inserir Júlio: moço-moreno, olhar de predador, sedução estilo metralhadora (um alvo e tiros pra tudo quanto é lado), esperteza desperdiçada em buscar frases soltas que agradem as moças, desempenho no trabalho abaixo da sua média (só para garantir o salário que paga a cerveja do fim de semana - e da segunda e da quarta-feira também).

No tipo da inveja lá está Hélio Delgado, corpulento apesar do nome, mas de enorme coração e sensibilidade usados para sofrer: decisões dogmáticas, condutas desacertadas, enormes culpas e um olhar de penetrar qualquer alma desavisada (mesmo que que esse tipo não interesse).

Como ocorre a soma desses dois:

1º fator +bar: Hélio bebe com a naturalidade de um habituado com cerveja - grandes goles, sempre pedindo a próxima cerveja chamando o garçom de amigão e completando com um valeu após o sinal de positivo do camarada - enquanto Júlio propõe um brinde a cada pérola dos amigos e conta histórias mixurucas mas que possuem início meio e fim - sem muitos sentimentalismos, mas com muitos sentimentos.

2º fator +paquera: Júlio fica na sua observando seu entorno até alguma peça lhe chamar atenção e poder cruzar o olhar para usar sua lábia - diga-se de passagem, péssima, pois o coitado só sabe da própria vida e aquilo que sua curiosidade, que está a serviço do seu interesse, conseguiu encontrar - enquanto Hélio já demarca a mais gata, avisa a todos e começa a torpeadear a pobre garota para impedir que os amigos olhem para ela - até porque ele nunca terá a mínima chance com ela pois não criará as condições para um diálogo.

Resultado =o furo: a gata escolhida por Hélio não pára de reparar em Júlio, que nem dá cartaz para não magoar o amigo. A peça levanta de sua mesa, se direciona para Júlio e tropeça no meio do caminho provocando a gargalhada das amigas comprometidas que dividem sua mesa de bar. Hélio acredita que seja para ele. Júlio ignora a situação e vai para o banheiro. A moça, corajosamente, se declara interessada em Júlio que, preocupado com a autoestima do amigo, se finge de desentendido.

Agora, a subtração do resultado pelos dois:

Resultado =o furo: Júlio vai até a mesa onde estão seus companheiros e duvida da honra da moça de quem Hélio está interessado, que, por sua vez, reclama a Júlio que "quem desdém quer comprar".

2º fator -paquera: Júlio, orgulhoso de sua fama de pegador e sentindo-se ofendido por Hélio, levanta da mesa, anda até o canto das minas, e, como se mina de ouro fosse aquele canto, canta e encanta todas as moças da mesa sem direcionar sua voz e provoca o sentimento de inferioridade de Hélio. Este, confiante em relação ao amigo mas inseguro em relação às garotas, se faz de garoto e fica de pé na mesa delas, com copo na mão e, para entrar na conversa, conta as vezes que Júlio perdeu as penas para limpar a bunda no acampamento em Ilha Grande.

3º fator -bar: As moças, interessadas em falar mal dos próprios companheiros, ignoram Júlio e Hélio que estavam se estranhando. O estranhamento toma proporções desagradáveis - desde a saída da mesa das moças até a discussão de quantas cervejas foram tomadas. Hélio diz que a culpa é do garçom, de ter aproveitado que eles estavam bêbados, Júlio diz que a culpa é de si mesmo, por não ter retirado os rótulos desde o início. 

Moral da história: O garçom fica sem dez por cento e o bar contabiliza menos quatro cervejas que foram pedidas pelos rapazes enquanto estavam em pé na mesa das moças discutindo.


quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Anáguas, rendas e penduricalhos


A menina acordava feliz, esperando o grande momento de ir até a horta com a avó. Como ela adorava o sítio! Maracujás nos pés crescendo ao redor da grade que separava a pequena propriedade da estrada. Nos fundos, o que ao longe parecia uma ribanceira, era na verdade uma horta completa, com legumes, verduras, muita banana e mamão. Sem falar na plantação de cana-de-açúcar, que davam bacias de gominhos geladinhos para comer depois do almoço. Delícia. De vez em quando ela dormia no quarto dos avós. Havia uma caminha de solteiro perto da janela especialmente para ela. E o closet da avó era o paraíso de penduricalhos, anáguas e rendas. Podia morar ali dentro da fantasia e a vida nunca teria que ter outro sentido a não ser inventar.

Hoje, ao olhar para trás, dificilmente lembrava-se desses momentos. Contas a pagar, projetos e decepções amorosas povoavam seus pensamentos, enterrando os que realmente faziam algum sentido. Aqueles que construíram sua personalidade e fizeram dela a pessoa doce e de coração grande que era hoje. Quando se pegou no meio da narrativa, seus olhos encheram-se de lágrimas. Era, sim, uma pessoa feliz. Muito feliz. E com a vida cheia de esperança novamente, resolveu que a partir de então faria um duelo com cada pensamento inconveniente que viesse saltar em sua cabeça: boas lembranças remotas e recentes desafiariam a tristeza até a morte.

sábado, 17 de setembro de 2011

Seu peru tá assando...

Em um ano de tantas querelas familiares, Ana Lúcia queria mais um motivo para a convivência com o marido e os filhos. No trabalho tudo ia meio capenga... sempre foi, só que agora existia a obviedade de uma greve que fazia com que tudo funcionasse na mesma lentidão de antes só que com uma faixa em letras vermelhas garrafais "GREVE".

O maridão, o maior abandonado, esquecia frequentemente as contas do fim de mês e jogava na loteria. Se tirasse a sorte grande provavelmente desapareceria deixando para trás aquele compromisso firmado há tanto: o que deus uniu o homem não separa. Êta época boa. Ana Lúcia nem tempo tinha de arrumar a cama para ir trabalhar na sua burocracia.

E as crianças, que nem mais eram tão crianças assim. Tudo continuava o mesmo: pagava-se suas despesas, comprava suas roupas íntimas mas intimidade com o pai e mãe - não! A raiva que dava em Ana Lúcia quando ouvia a chegada do natal pela Leader Magazine lhe provocava arrepios: querem meus presentes, não minha presença.

Havia decidido de antemão: Comemoraria o natal fora de época. Será que a família seria capaz de compreender aquele espírito em outras datas do ano? Dar valor ao peru fatiado, à sangria cheia de maçã, ao pavê de sobremesa? Ou passariam desapercebidos, até notarem a diminuta árvore no canto da casa e a trilha sonora natalina tocada por cavaquinhos? Vamos pedir a deus para unir sem que seja em eventos!

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Superexposição ou Emoção?



A onda vai

O vento vem

E o que mais queremos

Ninguém tem

Satisfação

É...

Quem vê Facebook

Não vê coração

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

O Deus submerso

O ateísmo foi uma conquista árdua na vida de Mateus. Ao doze anos as fortes críticas ao cristianismo, religião ao qual fora imputado, começaram a surgir, sobretudo quando o vil sentimento de desamparo humano, chamado também de crise existencial dava murros em seu fígado. Aos quatorze decidiu: "Vou ser ateu". Mateus, de nome bíblico, mal sabia a confusão que em que se metera: as crises aumentaram acentuadamente por causa de simples dilemas, como o de rezar ou não antes de dormir, fazer ou não o sinal da cruz ao passar em frente ao cemitério, e principalmente deixar ou não de dizer a expressão "graças a Deus", pois tinha acabado de reconhecer sua dimensão.


Por volta dos vinte a expressão "graças a Deus" e outros dilemas não eram mais problemas, e até chegara a desprezar e qualificar as pessoas religiosas - não importasse a religião - como inferiores. Monumentais teorias ecoavam da boca de Mateus, de nome bíblico, acerca da não existencia de Deus. Muitas delas ele nem compreendia, mas se regozijava em repetir pois sentia um certo ar intelectual ao proferi-las. 


Aos quaresta e cinco, agora que começava a entender algumas das teorias sobre o ateísmo, dizia que não poderia afirmar que não acreditava, e também não poderia afirmar que acreditava em Deus, enfim, ficava em cima do muro. Debatia com mais cautela, e o fígado começava a apresentar alguns sinais estranhos, porém familiares. O desamparo e a existência já tinham cadeira cativa em sua razão.


Setenta e sete anos, Mateus, de nome bíblico, observava o bisneto Pedro, também de nome bíblico, em seu colo sentado enquanto pronunciava "fofô". Com olhos marejados, por um instante pensou que Deus poderia existir, em algum lugar e não necessariamente no céu. "É uma dádiva, é uma dádiva!" exclamava para si recobrindo a soberba de cinquenta anos atrás. 


No leito de morte, oitenta e seis anos, Mateus, quase sem nome, sem corpo - sem fé? Quando seu bisneto Pedro, o de nome bíblico, aos doze anos e pensativo sobre o desamparo e a existência, entrou para dar, sem saber, adeus ao avó, chocou-se com cena. Mateus balbuciara com a voz rouca algo inaudível para Pedro, e este entendeu que era para se aproximar. Não ouveram úlitmas palavras, mas apenas um gesto, quando por fim, o fígado parou de apurrinhar: entre sua mão e a do bisneto, jazia comprimida uma pequena medalha de ouro com a foto de Jesus menino atrelada a uma fina corrente. Segundo a familia o cordão fora obtido no batizado do bisavó, quando ele contava os seis meses de idade e não pensava em nada.

Pedro, de nome bíblico, era ateu,  mas carregava no peito uma medalha de Jesus menino quando me contou essa história.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Holofote

Era eu só na praia de areia dura, cheia de cascalho e miudezas de conchas. O frio era pior quando a brisa batia e agitava o mar tranquilo. Por falar nele, de água escura, nessa hora da manhã só dava ara distinguir a espuma do mar. Era difícil se sentir confortável quando a iluminação era pouca. Onde estava a claridade da lua?

Sento-me à espera de meus amigos. Logo chegarão com as garrafas de vinho e eu poderei mergulhar sem me importar em deixar a mochila sem um olhar. Quem sabe, mergulhando, eu não encontro onde estão os raios da lua para que possamos ao menos enxergar nossas expressões faciais. A praia não era só aquilo, eu estava praticamente em uma pequena baía onde a mata densa separava pequenas praias e escondia a lua.

Só de ouvir a voz deles eu me atirei ao mar. Avisei da minha intenção, fui nadando na água gelada até que pudesse ver a claridade. Parecia mais os raios do sol que a presença da lua na pedra avermelhada. Apressei o nado e subi à pedra para ver qual praia era mais clara. Logo me deparei com um fenômeno único. Era a lua que refletia claramente a luz e o calor do sol. E era possível ver o fenômeno a olho nu.

Lá estava o sol, e pouco mais distante no céu estava a lua. Tal como um espelho, ela iluminava e esquentava uma praia à leste de onde estavam meus amigos. Tal como um espelho, ela direcionava os raios do sol, como se este fosse um holofote e não uma bola de fogo. 

Gritei ao longe para os amigos virem, e sozinha me estirei na pedra e por um momento me senti uma com a natureza. Una.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Jogos Mentais (ou A Culpa é da Tramontina)



Linda, porém pouco talentosa pra a carreira que queria em seguir. Cisma pura. E pra completar, ainda era complexada quando se tratava de amor e sexo. Fora abusada quando criança e embora isso não tivesse impedido que se relacionasse com homens, acabou elegendo as carícias femininas as suas preferidas.


A falta de liberdade homossexual trazia certa amargura. E pro seu infortúnio, estava completamente apaixonada pela colega de trabalho mais velha, que de complexada não tinha nada, e ainda era um furacão na cama. Não sabia se assumia sua preferência ou comprava um jogo de panelas novo. O velho dilema.


No meio da confusão se envolveu com um sujeito macho. Muito mais pelo seu olhar doce do que pelo membro intumescido que a penetraria durante o relacionamento. Sensível, ele acabou se apaixonando e a moça – apesar de ter descoberto o sexo hetero com o rapaz – tinha certeza que preferia os beijos doces e o roçar macio das meninas.


Quando saía dos braços apaixonantes da mulher amada, sentia um misto de culpa e insatisfação social, que a levava a procurar o abraço mais forte. Só que imediatamente se arrependia e agia de forma estranha, pro desespero do rapaz enamorado. Ele, por outro lado, investia calado (esperto!), torcendo pra que ela lhe desse uma chance de mostrar que podia amar e ser amada sem complexos.


Até que ela escolheu assumir o namoro com o mancebo, sofrendo calada as saudades crescentes da amante preterida. O tempo passou e o rapaz recebeu uma oportunidade de emprego em Nova Iorque. Mudou-se com ele de mala e cuia pra viver o sonho americano, com casa, carro e dinheiro no bolso.


Foram felizes por um tempo e o casamento chegou ao fim juntamente com a mudança de volta à Pátria Amada. O tesão deu lugar à mesmice e não havia espaço pra amizade. Não tinham nada em comum. Nada. Voltou ao Brasil pra a vida de outrora: casa da avó com a mãe e suas neuroses. A falta de objetivo a empurrou pra a boemia. Tentava afogar nos copos a preferência por mulheres, o casamento fracassado e a dependência da família.


Não demorou muito e a insatisfação voltou contra o próprio corpo. Se achava gorda, além de inútil, e foi um pulo pra se enfiar em anfetaminas. Passava um pouco dos 30, mas tinha cara de menina, a pele aveludada e olhos amendoados. Logo arrumou outro namorado.


Moço rico, de família nobre da Zona Sul do Rio de Janeiro. Herdeiro e disposto a ter mulher e filhos pra acobertar suas orgias homéricas nos inferninhos de Copacabana. Só que a morena de olhos amendoados também gostava de uma festa e não demorou muito pra cair na esbórnia com o pretendente e seus amigos.


Ele a convencia facilmente a ficar em casa: jantares sedutores, jóias caras e muita birita de qualidade mantinham a jovem de boca calada. Somando-se parcelas generosas de seu coquetel de bolinhas pra segurar o apetite e uma boa série de TV americana e a noite estava garantida. O herdeiro deixava a mocinha em casa e partia pra bagunça.


Apesar de contrariada ela aceitava tudo de boca fechada: estava satisfeita com sua vida de aspirante a dondoca. Ele reforçava os mimos toda vez que exagerava na dose: mais presentes, mais jantares. E até presenteava a família dela, pra que a moça não reclamasse do pouco contato que nutriam. O tempo passou e juntaram os trapos, festas, jantares, jóias, orgias e bolinhas.


Na ilusão individual de cada um, tudo daria certo. Ela teria um marido companheiro e ele uma esposa submissa. Foi quando ao final do terceiro mês a surpresa aconteceu. Sonhando com a tal mulherzinha dedicada, o maridinho chegou em casa com um pequeno enxoval, adquirido em uma aposta que ganhara no páreo da noite: talheres, jogo de chá e panelas.


Os olhos amendoados não gostaram nada do que estavam vendo. Como é que pode ele se meter num assunto tão específico? Ela queria decorar e comprar as coisas da casa! E queria panelas Tramontina! A vida inteira sempre soube que eram as melhores! A discussão começou branda e foi ficando feia, a ponto de voarem talheres pelo apartamento recém montado.


O sonho dourado desmoronava subitamente e não havia amor que salvasse o casal da maldição das panelas.

domingo, 4 de setembro de 2011

Antes que seja tarde

Agreste é o humano coração:
de solo pedregoso, com escassa
e mirrada vegetação,

num espaço acuado
entre a Mata e o Sertão;
semi-árido é seu ar,
 
e temeroso (e desejoso)
de um mar,
que o inunde de amar

antes de seu anoitecer,
e termine por grimpar,

a espuma sobre o mar,
e o nada sobre o ser.