QUINTA-FEIRA, 6 DE JUNHO DE 2013
A questão sobre a legalização ou criminalização do aborto
esconde uma disputa ideológica mais essencial que a questão em si. Mas tal
disputa parece ter ficado de lado quando os reclamantes de ambos os lados
levantam suas vozes sobre as particularidades dessa uma disputa ideológica,
largando-se fanaticamente sobre a questão, encetando o direito a vida –
considerada a partir da formação original do embrião ou da fecundação primeira
– ou o direito do indivíduo – a mulher, no caso – de determinar o curso da sua
vida particular (sexual, afetiva e, mesmo, fisiológica), e ignorando quase por
completo que uma discussão mais ampla deve tomar lugar na esfera social.
Quando a mulher, entendida como pertencente a um grupo
minoritário (no sentido dos direitos reivindicados a uma questão de gênero)
evoca o direito sobre o seu corpo (ainda que seja um direito legítimo) ela
permite que a discussão percorra um trajeto superfícial que não revela o
caráter social mais amplo e necessário da questão. Quero dizer com isso que a
criminalização do aborto projeta – nas bases ideológicas mais essenciais dessa
disputa – a redefinição e perda de um direito que não é apenas da mulher, mas
do indivíduo enquanto membro de uma sociedade acolhida por um estado.
A definição de que o embrião é já uma alma (e que assim
pressupõe a existência da alma nos termos dos quais a filiação religiosa é
pretendente) quer projetar sobre o estado a incumbência da proteção desse,
limitando, assim, os direitos da mulher sobre o seu corpo e, em última
instância, sobre a sua sexualidade. Tal assumpção sugere que o Estado ceda a
uma posição ideológica que tem em vista as premissas de instituições religiosas
particulares, transformando essa premissa – a primeira vista religiosa – em uma
determinação política. Ou seja, conforme todos os cidadãos adquirem direitos
que estão previstos nas cartilhas de determinada religião, ao mesmo tempo, eles
se encarceram sob os deveres descritos também nestas cartilhas.
O direito do embrião de se desenvolver em um indivíduo
ativo, no entanto, é uma pura abstração (como são, em todo caso, os direitos
previstos e instituídos e a determinação social e jurídica desses direitos). A
posição ideológica outrossim defendida sob a nomínia desse direito, por outro
lado, aparece de forma mais concreta na atual situação política do país. Parece
desnecessário dizer que tal posição ideológica tem como anteparo as religiões
cristãs de uma forma geral, mas o que não aparece nessa bandeira é que a atual
disputa (a disputa particular sobre legalização ou criminalização do aborto) se
apresenta segundo a realidade em que um grupo particular de cristãos ganha
terreno no cenário político e põe a frente essa (e outras disputas menores)
que, apesar de visíveis e em pauta em tempos passados, não assumiam até então a
dimensão política que ora temos em vista. Forçando, assim, uma investida
pungente contra o Estado laico e angariando na oposição corrente um antagonismo
que generaliza e se reveste da rivalidade contra a própria religião. O Estado
laico, no entanto, não deve ser anti-religioso (um Estado ateu, por definição),
mas um estado em que a religião não implica diretamente aos cidadãos como um
todo uma determinação que deveria ser propriamente política.
Diante desse cenário, é impendente que as instituições
religiosas segmentárias se manifestem em favor do próprio laicismo do Estado,
sob o risco inconveniente de deixarem de existir: Um Estado religioso é,
invariavelmente, um Estado que suporta apenas uma religão. A religião, em todo
caso, é definida pelas suas instituições; e instituições distintas, como
ocorre, fundamentam religiões distintas em cujos deuses e dógmas (ainda quando
partilhem nomes e origens afins) se promovem direitos e deveres distintos. Ao
mesmo tempo, parece-me importante que a disputa em razão da legalidade ou não
do aborto deva sempre estar na visada desse contexto e não se transforme numa
disputa alijada onde, talvez, uma maioria composta por grupos culturalmente
influenciados pelo “repertório” cristão tomaria a posição religiosa em
detrimento da posição política, sem perceber que, desse modo, eles mesmos estão
sendo preteridos e submetidos na disputa política.
É preciso, assim, que os partidários da posição religiosa
tenham nome, que suas instituições estejam visíveis e que a disputa que tem em destaque
a questão do aborto seja vista como expondo de forma irreversível à
vulnerabilidade o estado laico, impossibilitando a orientação a uma sociedade
inclusiva a diversidade cultural, étnica e religiosa - e gênero.
Vivemos em uma sociedade sexista em que as revindicações sob
bandeira de gênero são legítimas e devem ter lugar e evidência nas discussões
políticas atuais e advindas. Mas essa guerra particular, parece-me muito maior
e nenhuma bandeira deveria ser alçada que não a bandeira da justiça social, da
participação política plural e inclusiva e dos deveres postos em vigilância em
nome dos direitos diversos dos grupos, instituições e indivíduos. Do direito ao
aborto legítimo e subvencionado pelo estado, do direito a educação e saúde, a
livre circulação de ideias e informações, mas tambem o direito à prática
religiosa. Sempre quando esses direitos se mostrarem contraditórios e
conflitantes é preciso retornar as bases da disputa ideológica e se verificar
se a razão da disputa é mesmo a noção imprecisa de justiça e humanidade (que
deve abarcar indivíduos tão distintos) ou se é o caso da manipulação
(intencional ou não) em favor de um grupo minoritário.
POSTADO POR BRUNO MONTEIRO ÀS 17:04