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sexta-feira, 29 de abril de 2011

O luto do segundo molar

Após ela ver seu recente ex-namorado rindo escandalosamente com outra mulher em frente a uma vitrine de bolsas, começa os desvarios:
 “Que raiva! Vou lá falar come eles. Não, vou ficar olhando. Ah, vou pra casa. Ah... 
Ela lá parada, olhando a cintura fina da outra na mão dele. Ela lá, parada, e a força da raiva se transformando na dor da tristeza. Ela, lá, confusa e parada.
Depois de um bom tempo vai para casa, ainda tresvariando:
“Por que fui ver aquilo? Pergunto até agora o porquê disso tudo? E que boca era aquela? Toda escancarada e os dentes amostra como eu nunca vi antes, nunca. Em quatro anos! Aquela cintura fina e ele agarrado a ela. Olhando aquela merda de vitrine; e como sorria, pra que abrir tanto a boca?! A menos de quinze metros de distância eu vi, e ninguém me contou. Ainda mais que eu não iria acreditar se alguém falasse; ainda mais que não ia ter ninguém pra me contar. Que porra de sorriso que ele deu em frente à vitrine de bolsas: com a boca mais descerrada que boceta de puta calejada. E eu vi: a boca tão aberta, e os dentes tão amostras que eu via o segundo molar – e obturado –, a mais de quinze metros de distância. O molar! E o segundo! Quem sabe se fosse o pré, ou até o primeiro molar... Eu me lembro de um sorriso que ele deu quando estava comigo. Eu vi o molar... o primeiro molar.
“Ninguém me contou, eu vi. Depois de todos os sorrisos, das brincadeiras idiotas, de mais sorrisos – todos de segundo molar. Depois de quase duas horas olhando aquela merda de casal.
Caminhando há meia hora para compensar as quase duas de autoflagelação que imputara a si, gastava a sola da sandália indo a pé para casa. Aos últimos passos de casa: choro, riso, choro, respectivamente, de dor, de raiva, de dor. Ela que deveria estar com as pernas indiferentes pelo passeio no shopping, agora parecia ter pernas de hipertenso que se arrastavam ao longo de toda caminhada: chorando, rindo, chorando. Os olhos que eram para estar descansados com a vitrine de bolsas – e a bolsa vermelha que ela estava pensando comprar, até o momento em que desistiu por ter gostado justamente daquela que pertencia à mulher do sorriso de segundo molar, e que a fez detestar a partir daquele momento, as bolsas vermelhas, as batas vermelhas, as echarpes vermelhas – estavam vermelhos, do choro, do riso, do choro.
Chegou pingando de suor e foi logo tirando a roupa em direção ao banheiro. Os olhos não agüentavam mais: coçavam, doíam, ardiam. Entrou no banho. As lágrimas se embolavam com a água do chuveiro que batia na face, e os olhos ardiam e coçavam e doíam. Os risos agora vinham como soluço, somente para interromper a dor, a ardência e a coceira. Enrolou-se na toalha e foi se olhar no espelho – pra quê?! Os olhos, todos aqueles: os da vitrine de bolsas; os que viram o segundo molar a mais de quinze metros de distância; os da ardência; os da coceira; os da dor; aqueles vermelhos.
Mesmo cansada diante dos fatos ocorridos procurava fazer coisas banais a fim de ocupar a cabeça. Foi por suco no copo. Derrama o líquido amarelo na toalha de mesa e no chão, o copo cai e quebra. Ela desaba num choro que desanda na exaustão do dia que culmina no sono profundo num pequeno sofá. Ao levantar no dia seguinte, caminhando até a cozinha sente dor nas pernas, avista então o suco e os pedaços de vidro espalhados pelo chão – lhe vem assim o primeiro pensamento do dia. Pensamento que inaugurava o começo de um luto que perdurará por quase um ano:
“Por que ele riu daquele jeito?

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