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quinta-feira, 28 de julho de 2011

A Herança

Sem perceber, vivia a sua vida pelos outros. Pelo o que os outros haviam designado como o melhor. A saúde, o trabalho, o amor, ah!, o amor. Já não sabia muito bem quando nem como estas idéias estavam enraizadas nos seus sentimentos. Lembrou-se de quando era pequena e as mulheres da família se reuniam na mesa de madeira maciça da cozinha de bronze. As crianças não tinham fala. E as mulheres de voz grande gargalhavam e se atropelavam em gestos exagerados. Só, lhe davam o prazer da companhia na comida partilhada. E comia, e comia.

Havia anos que não começava nada de novo. Nada que realmente mudasse o seu jeito de pensar. Acordava cedo, tomava o suco de laranja, ia à pé ao trabalho - que por sorte ficava a cinco quadras de sua casa - de onde voltava para almoçar, sem gastar dinheiro com o tempero dos outros. Suas noites variavam entre filmes, livros e a companhia de um ou dois amigos que na visita levavam a garrafa de vinho: dois dedinhos eram suficientes para um riso solto. A espera de um ciclo novo estava no fardo, a mãe, debilitada por tantos anos de uso da vida. Apesar de não ter convivido com ela durante a infância ou a adolescência, foi aos 35 anos que passou a habitar com ela, nela.

O dinheiro não trazia conforto. Ainda mais depois que ele a trocou por uma moça de poucos modos, pouca rotina e pouco amor. Sabia que ele chorava pela moça, mesmo quando estavam juntos em conchinha na cama. Achava que eram suas aquelas lágrimas ardidas no lençol que dividiam. Achava também que suas lágrimas eram dele. Mas sabia, sempre foram suas. Então, a mãe doente precisava de uma enfermeira e o amor de um amor. Foi ele que deixou ela.

Não sabia que a mãe tinha uma poupança, deixada por um general que havia desviado muito dinheiro quando trabalhara no governo. Ele era casado, a mãe também, mas o pai ainda a recebia nos almoços de domingo e no fim dos seus sonhos. Já se passaram 5 anos e a mãe estava na UTI - poupando para os bolsos dos médicos.

Algumas pessoas quando morrem levam o que tem de mais valioso: um pouco de incenso, uma boneca de pano ou um anel de rubi. Quando foi que a inveja dos outros estabeleceu a herança? Ou seria um misto de cobiça do vivo que se dissipa em inveja na sua morte? Lembrou que quando o pai morreu, o novo irmão levou todos os móveis da casa enquanto ela preparava o funeral. Lhe restou um pinico de porcelana e o porta-retrato amarelado com a foto do primeiro casamento. Anos e anos de nada de novo. Era a falência.

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