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sexta-feira, 6 de maio de 2011

Associações


Segundo dia:

Desde o primeiro passo no chão após despertar de uma noite mal dormida – a interrupção do sonho por causa de um braço dormente – ironia, o braço dorme e ela de olhos arregalados sem entender o porquê –, até o fim do dia chega Jana com a mesma dor de cabeça que lhe impusera a vigília. Deita no colchão duro fica a imaginar o que aquele pedaço de vida tinha lhe proporcionado ao longo dos quatros períodos que ficara a observá-lo. Conclusão de Jana:
- Dor de cabeça e café da manhã, dor de cabeça e trabalho, dor de cabeça e almoço, dor de cabeça e...  – Uma pausa. – No almoço eu comi o quê? Arroz, feijão, carne. Bife a borboleta? Mas por que esse nome? Só porque fica aberta e parecem asas... Seria tão bom se eu tivesse asas. – E continua a associar Jana meio sonolenta. – Imagina eu voando... Eu vou pra onde? Pra onde eu quiser. Eu tenho asas e não vou gastar nada, saio voando. China, Egito, Índia... – Assim entra num sono profundo que culmina num sonho sobre a leveza de ser borboleta.

Primeiro dia:

Com traços de indígena Jana fora apelidada de ‘índia’ por seus amigos – nome que não lhe agradava e não sabia o porquê, afinal sua mãe sempre elogiava a beleza dos índios. Adulta e tendo se perdido do pseudônimo, não ousava pensar em rememorá-lo, até que o achou na boca de um antigo colega de classe que por acidente encontrara na rua.
- Índia!
- Oi.  – Diz como quem levou um soco na boca do estômago.
- Não está lembrado de mim? O César, da escola, segunda à quinta série, lembra?
- Oi César, mas quanto tempo. – Ela fala querendo se achar, mas a única coisa que lhe vem à cabeça é o atraso em que se encontra.
- É verdade.  – E com um enorme sorriso continua César – Tá fazendo o que por aqui?
- César, desculpa, mas tenho que ir, to super atrasada. – Assim, saiu correndo para o trabalho sem dizer ou pensar em mais nada, sem olhar o relógio, simplesmente as contrações dos músculos encontraram a resposta para a situação.
Jana realmente estava super atrasada e nem se recordava porque não lhe pediu o telefone ou email para um possível contato futuro. Chegando ao trabalho e levando uma bronca da chefa, metia café fervendo goela adentro para conseguir trabalhar de olhos abertos. “Mas que sono animal” dizia para um amigo enquanto se espreguiçava sobre a cadeira.
Rezando para chegar em casa e tirar a sandália de salto que a machucou o dia todo, começa a pensar sobre o repentino encontro e rumina perguntas acerca do nome do antigo colega. “Era Carlos? Marcos? Senna?” Sem êxito. Depois do banho decide ir pra cama mais tarde, faz um chá para comer com biscoitos água e sal enquanto continua a vasculhar nas gavetas da alma o nome do sorrizento. Não obstante sua memória brinca de esconde-esconde. Depois de um bom tempo desiste da reminiscência, liga a TV para ver um filme, e cai num sono que logo será interrompido por um braço dor-mente.


Terceiro dia:

“O dia vai ser produtivo... Hoje acordei com uma disposição animal” pensa ela ao acordar de um belo sonho. Toma um café reforçado – tem tempo para isso – e decide passar numa livraria antes de entrar no trabalho para comprar o último lançamento de Roberto Piglia. Como namorara esse livro! Entretanto encontrava desculpas para não entrar na loja e comprá-lo como quem com sede no deserto procura um oásis para saciar a aterradora sede – quem vai saber por quê?!
Na hora do almoço decide ir com Arnaldo – um colega de trabalho – a um restaurante onde, salada, prato quente e sobremesa eram obrigatoriamente vendidos juntos. Fizeram o pedido, e vale ressaltar, sem pressa. Situação inversa foi forma com que Jana devorara a salada, glutonice de estranhar aos mais chegados amigos e familiares, se estivessem estes a assistir a tal espetáculo: comparado somente ao famoso quadro de Goya, em que Saturno devora seu filho. Passado poucos minutos, a mulher de feições indígenas e corpo esguio começava a sentir uma terrível dor de cabeça, comenta então com Arnaldo da dor do dia anterior e a assemelha minuciosamente com a que acabara de irromper. Mas ele, pensando num trabalhoso processo em que lhe foi designado – sem mencionar a falta de interesse na conversa –, mudara de assunto sem dar muito atenção a colega. Ao terminarem o almoço, Arnaldo sem querer afirma o total desinteresse nos assuntos alheios com a pergunta: “por que não comeu mais nada além da salada Janaina?”. Ela imensamente irritadiça reponde: “por porra nenhuma”.
A saída do trabalho transcorreu sem muitos empecilhos: o trânsito tumultuado, a multidão a se esbarrar, o barulho das buzinas, o ar pesado de monóxido de carbono e nicotina já lhe eram mais que o habitual. Todavia, a dor de cabeça agarrava-se a Jana como uma criança que não quer sair do colo de sua mãe, e, se esta tenta largá-la ou finge não dar ouvidos, aquela grita ainda mais forte.
Em casa depois do banho Jana bebe um copo de água – um rito cotidiano – e parte para o duro colchão. Deitada com a face pro ar se põe a divagar ao lado de sua companheira latejante. De repente lembra-se do trabalho, em seguida da academia que ia havia duas semanas, das compras de mês, de um cara na rua que tinha esbarrado e ela falara “desculpa moço”, daí, pro almoço, então se fez uma pergunta que não lhe era estranha – não por se lembrar que sempre a fazia, mas exatamente por não se dar conta dela – “o que comi no almoço? Salada Cesar, uma carne com aquele corte, arroz e fritas, e salada de frutas de sobremesa.
Passados alguns minutos Jana não lembrava mais da dor que se apresentava em tons ora extremamente agudos ora excessivamente graves tocados no interior da caixa craniana como se fosse um xilofone descompassado. Conseguira enfim dormir. Seu sonho: tinha acabado de colorir um livro, e ao fim, todos os desenhos estavam borrados. Sentia então uma raiva imensa, mas não diretamente pelos borrões, e sim, pela raiva que sentia por não derramar uma gota daquilo que esmagava seu peito e subia-lhe a cabeça. Por fim, vinha uma pessoa estranha – estranhamente familiar lhe dizer: “pensa em uma borboleta que isso já vai passar”.

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